Skip to main content

O Melhor Sorriso


Aquela estava a ser uma manhã maravilhosa. Um sol esplendoroso, daqueles que só se vêem em Lisboa, brindava-nos do céu e eu ainda tinha umas boas horas pela frente até ter de ir para o trabalho. Ainda assim, levantei-me, apesar da hora matutinal e fui dar uma corrida. Nada melhor do que um pouco de exercício pela manhã para me deixar com energia para o dia inteiro.
Após 30 minutos de corrida à beira-Tejo, resolvi abrandar a marcha e parei num quiosque, onde pedi um capuccino para levar e uma embalagem de pastilhas elásticas de morango. Bebi o meu café em dois goles grandes e voltei a aproximar-me do rio. Respirei profundamente a brisa da manhã. Havia muito tempo que não me sentia tão calma e equilibrada.
Estava a tentar abrir a embalagem de pastilhas, com alguma dificuldade, quando me voltei para trás e quase embati num rapaz que me olhava de forma fixa. O rosto pálido e encovado, os olhos vazios, parados como se me olhassem mas não me vissem e a expressão apática, fizeram-me arrepiar.
- Perdão. Eu não sabia que estava aqui.
Os seus olhos abriram-se mais um pouco enquanto me focava mais intensamente. Senti-me um tanto desajeitada.
- O meu nome é Tatiana. Desculpe, eu sou mesmo distraída...
Ele fitou-me durante mais alguns segundos e a incredibilidade atravessou-lhe o rosto. Ao fim de alguns segundos, acabou por dizer.
- Perdão, eu não me devia ter colocado mesmo atrás de si. O meu nome é Paulo.
Sorri-lhe. Parecia extremamente envergonhado e decidi que deveria tentar aligeirar a situação.
- Então... Estava a apreciar o rio?...
Voltou a focar-me com uma intensidade perturbadora e diz-me:
- Acho que sim.
Não saberia descrever como tal acontecera, mas ao fim de alguns minutos dei comigo a passear lado a lado com aqueles desconhecido, pela beira do rio, enquanto conversávamos como se há muito tempo nos conhecêssemos. As pessoas que passavam por nós, fitavam-nos insistentemente.
Ao fim de algum tempo, consultei o relógio. Ele dizia-me que eram exactamente as mesmas horas e os mesmos minutos a que tinha saído de casa.
- Não é possível.
- O quê? - perguntou Paulo, com um olhar desconfiado.
Sem perder mais tempo com explicações, tirei o telemóvel do bolso e consultei o seu relógio. Já passava das 10.
- Oh! Lá se vai a minha manhã calma. Estou muito atrasada.
Depois de uma despedida atabalhoada, corri na direcção do estúdio onde deveria estar a ensaiar há cerca de 20 minutos. Claro que a recepção não foi a mais amistosa, não só estava atrasadíssima, como estava a prejudicar o trabalho dos outros. Era uma protagonista que entrava em quase todas as cenas. O meu primeiro grande trabalho, a maior oportunidade de todas...
“Bolas, espero não estragar tudo.”
Troquei de roupa o mais depressa que consegui e durante as horas que me restaram, esforcei-me como se aquela fosse a estreia absoluta, diante do mais difícil de todos os públicos. Não podia dar mais motivos para ser substituída. No fim do ensaio, dirigi-me à sala que nós usávamos como camarim e troquei de roupa. A minha cabeça estava longe e sentia-me desconcentrada, mas ainda assim, vi cair um papel no chão. 
Sem ter a certeza de onde tinha vindo, peguei nele e verifiquei que tinha uma morada escrita. Uma morada desconhecida. Fiquei a olhá-lo.
- O que é isso? - perguntou Clarisse, uma das novas bailarinas.
- Não tenho a certeza...
Ela debruçou-se ligeiramente sobre mim, movida pela curiosidade. Ao verificar o conteúdo, não fez nenhum comentário. Decidi ignorar, atirei o pequeno pedaço de papel rasgado para dentro do meu saco desportivo e saí.
Quando cheguei a casa, deitei-me um pouco para descansar o corpo e em seguida fui tratar da minha roupa. Retirei tudo do saco de desporto e enfiei na máquina de lavar. No fundo do saco, ficou o estranho bilhete.
Voltei a pegar nele, desta vez como se se tratasse de uma rara preciosidade, uma antiguidade prestes a desfazer-se e fitei-o com mais atenção. Estava escrito em letra cuidada e cheia de floriados. A tinta que desenhava as letras negras parecia queimar na ponta dos meus dedos. Sem dúvida alguma, tratava-se de uma morada. Mas de quem? E como teria ido ali parar?
Por mais que pensasse, não era capaz de imaginar quem mo teria dado. Ou perdido... Voltei a fitar o papel. Sem saber mais o que fazer para solucionar o mistério, liguei o computador abandonado desde a noite anterior, em cima da mesa da sala e abri o meu motor de busca habitual. Escrevi a morada que constava no pequeno bilhete e rapidamente surgiu um mapa no ecrã. Não era muito longe dali.
Voltei a fechar o computador e após comer uma pequena refeição, decidi deitar-me e descansar. Dormi pouco, tinha a clara sensação de que tinha algo importante a fazer.
Na manhã seginte, levantei-me bem cedo e dirigi-me ao carro. Digitei a morada no GPS e sem pensar muito no assunto, segui as indicações ditadas pela voz computorizada a quem eu gostava de chamar Armando.
Seguidas as indicações que o Armando me dera à risca e ao fim de 20 minutos, vi-me diante de uma casa abandonada. Observei melhor. Havia cortinados nas janelas, mas pelo menos dois vidros estavam partidos e as rachas nas paredes eram grandes e profundas. A pintura estava desbotada e o jardim coberto de ervas daninhas, com os arbustos salpicados de castanho e preto, pelas suas inúmeras folhas estragadas.
Saí do carro com alguma apreensão. Respirei fundo e olhei em volta, a rua estava deserta... As casas abandonadas são, muitas vezes, usadas por toxicodependentes e sem-abrigo e senti algum receio de entrar nela. Mas ao mesmo tempo... Voltei a retirar o papel amarrotado do bolso traseiro das calças e observei-o durante mais alguns segundos. Voltei a inspirar e expirar, lenta e profundamente e entrei na casa...  

CONTINUA

(Imagem: https://prosaempoema.wordpress.com/tag/eucanaa-ferraz/)





Comments

Popular posts from this blog

Conversations with a Killer: The Ted Bundy Tapes

This is not the sort of show which I usually talk about on this blog. However, as a psychologist, I’m usually quite curious in regards to criminals and their minds; and one of these days I started watching this documentary on Netflix . Taking into consideration the kind of thing this is, I can’t say I ‘liked’ it. I mean what you see in there is nothing to like, but I was rather terrified, which is probably the usual response. Nonetheless, it was definitely a good documentary. The eyes of a killer Everything displayed in this story was terrible. The descriptions, Bundy’s posture, everything seemed like some sort of horror show, putting into perspective what we may consider to be lucky or unlucky in this life. Before I even start watching it, I read somewhere that this was the kind of thing you shouldn’t watch alone. Sounds accurate right now. At the time, and considering my, mostly academic, experience, I didn’t think that this could actually be so upsetting.

Young Sheldon – A Heartfelt and Hilarious Journey

  Young Sheldon is a delightful surprise, blending humor, heart, and a touch of nostalgia. As a prequel to The Big Bang Theory , the show offers insight into the childhood of Sheldon Cooper, one of the most iconic characters in modern TV.  A Show That Grows Beyond Sheldon While you may start watching due to curiosity about Sheldon's early years, it soon becomes clear that this is not just about his childhood. The show includes an incredible variety of characters with their own charm and depth. Mary (Sheldon's religious yet compassionate mother), George (his often misunderstood father), and his siblings, Missy and Georgie, are all given their own moments to shine.  The cast and their chemistry make this show stand out. You start to care about each character's struggles and triumphs. This show quickly stands on its own as a heartfelt, family-driven sitcom. Especially in its last seasons, the show becomes a touching portrayal of small-town life, family dynamics, and personal

The Three-Body Problem: Unexpected and Challenging

  The Three-Body Problem on Netflix is a captivating and intriguing series that delves into the realms of science fiction with a unique and thought-provoking storyline. You can't let go from the first episode, even when you feel lost in the plot. Engaging and Intriguing The show excels in drawing viewers in with its complex narrative and engaging plot development.  From the beginning, the audience is immersed in a world of mystery, suspense, and scientific concepts that challenge the imagination. The intricate web of characters and events keeps viewers on the edge of their seats. Flat Ending to Anticipate Season 2 After so much suspense and mystery, the season finale was a bit disappointing. Yet, it left us wanting more. I believe that for many viewers, it heightened the excitement for what lies ahead. With the foundation laid in the initial season, there is great potential for the upcoming season to address any lingering questions and provide, once more, good entertainment. Chal