Skip to main content

O Melhor Sorriso (2ª Parte)



Apesar do aspecto velho e gasto dos móveis, a casa estava mais ou menos limpa, o que estranhei. Não havia pó em cima dos móveis e apenas uma ou outra migalha de pão se encontrava caída no chão. Calmamente, comecei a caminhar pela sala e fui observando os sofás poídos, a mesa com a perna partida, as cadeiras com as almofadas rasgadas pelo tempo ou pelas unhas de algum gato.
O meu coração quase parou, quando olhei para uma mesinha ao canto, onde estavam pousadas dezenas de fotografias. Aproximei-me e observei-as, eram todas da mesma pessoa e peguei a moldura da frente. Não havia dúvidas. Era ele.
Um ténue barulho atrás de mim, fez-me saltar com o susto. Ao voltar-me, fiquei frente a frente com uma senhora na casa dos 70, que me olhava com uma expressão apreensiva. Sem saber porquê, voltei a olhar para a fotografia na minha mão, agora desfocava pelo tremor que o susto me causara.
- Desculpe. - apressei-me a dizer. - Pensei que... a casa estava vazia.
- Também eu. - respondeu, com o olhar cheio de ternura. - A casa está velha, mas eu moro aqui.
- Peço imensa desculpa pela intromissão, mas foi me dada esta morada e... - Aquilo era de loucos. Mostrei-lhe a moldura ainda na mão. - Quem é?
Um dos mais belos e bondosos sorrisos que alguma vez encontrei, iluminou o rosto daquela mulher.
- É o meu filho. Era um bom menino.
Era?
Talvez por verificar a minha expressão surpresa e confusa, resolveu elucidar-me.
- O meu filho faleceu há alguns anos atrás...
- Eu lamento muito. - Senti a minha voz tremer.
- O tempo ensina-nos a viver com as coisas.
A tristeza contida no seu olhar contradizia as palavras proferidas sem grande convicção. Senti um estranho sentimento de ternura por aquela desconhecida, que demonstrava uma grande capacidade de amar. O meu coração, porém, continuava com a sua batida irregular. Aquele era o homem que falara comigo junto ao rio. Como era possível?
- Ele tem... teve... filhos?
- Não. - respondeu fitando a fotografia na minha mão. - Não teve tempo, partiu muito jovem.
O meu olhar devia reflectir todo o horror que estava a sentir naquele momento. Como era possível que ele tivesse vindo falar comigo? Talvez a mãe achasse que ele estava morto e... Mas então... Ele... Não... Se assim fosse... Porque me mandara para ali? Para lhe contar? Voltei a olhá-la.
- Desculpe, mas disse-me que ele tinha falecido há alguns anos...
Os seus olhos estavam brilhantes e húmidos.
- Dez anos. Dez anos de solidão e de uma vida sem significado... Dez anos, durante os quais Deus se esqueceu de mim.
Tinham passado 10 anos... ele teria envelhecido durante esse período de tempo. Voltei a olhar a fotografia. Não, era o mesmo exacto rosto, sem uma ruga ou cabelo branco a mais. Com o horror a contorcer-me o estômago, despedi-me da mulher, com uma estranha urgência. Ela continuava a fitar-me com ar confuso. Ao fim de alguns segundos, acabou por dizer-me:
- A menina... como chegou até aqui?
Voltei a olhá-la. Contei a verdade. Ou o que podia dela.
- Sou bailarina e hoje ao chegar ao pé do meu saco, encontrei um papelinho com esta morada. Alguém deve ter deixado cair. Alguém... que a conheça.
- Hmm... Isso é muito estranho. Estou tão só que nem as moscas me fazem companhia, há muito tempo...
Senti-me corar. Tinha ido perturbar aquela pobre mulher, já tão sofrida.
- Desculpe a intromissão.
- Não há o que desculpar. - referiu com um sorriso afável. - Gosto de ver uma cara bonita de vez em quando.
O seu sorriso era contagiante e não pude deixar de sorrir em resposta. Voltei a despedir-me, agora, com a promessa de voltar um dia para um chá.
No caminho para casa, pensei no quão surreal era tudo aquilo. Como é que era sequer possível? Alguma brincadeira de mau gosto? Se não tinha família, como podia alguém ser tão igual a ele? E ainda por cima, saber a sua morada? E … se fosse... um fantasma? Senti-me ridícula pelo meu pensamento e ao mesmo tempo, não era capaz de encontrar uma explicação melhor. Suspirei.
Ao chegar a casa, liguei imediatamente o computador. Vi o meu e-mail, nada de interessante e recostei-me na cadeira. Fiquei durante alguns minutos a pensar no rapaz que conhecera perto do rio e decidi investigar um pouco mais, dentro das minhas possibilidades. Durante a conversa, a velhota tinha-me dito o nome dele e tentei encontrar alguma informação na internet.
Não demorei muito a deparar-me com uma notícia de jornal. Ele tinha sido a única vítima mortal de um terrível acidente de viação, numa auto-estrada do norte do país. Uma noite chuvosa, falta de sono e excesso de velocidade, tinham sido os seus acompanhantes até ao lado de lá...
Fechei a tampa do portátil, sentindo uma estranha comoção e tentei dizer a mim mesma que tinha estado a conversar com um fantasma e que ele me tinha enviado à sua antiga casa. Olhei o espelho na parede à minha frente. Sem saber porquê, já não me custava tanto acreditar nessa teoria, mas... Se era verdade, então porque motivo ele o fizera? Pensei novamente naquela mulher de rosto sofrido.

No dia seguinte, saí bem cedo do trabalho. Passei numa pastelaria ali perto e escolhi alguns “mimos”. Na dúvida sobre as suas preferências, escolhi os que mais gostava e dirigi-me novamente à morada dele.
Fui acolhida com um enorme sorriso e disse-lhe:
- Trouxe alguns mimos para nós.
Abri ligeiramente a caixa e um novo sorriso se mostrou.
- São os meus preferidos. - respondeu-me, visivelmente agradada.
Nessa tarde, bebemos chá e comemos bolinhos. Conversámos durante horas e horas. Ela partihou comigo as histórias da sua vida. Eu partilhei o meu mundinho que jamais gostava de dividir fosse com quem fosse. Era como se nos conhecessemos há muitos anos.
Do canto da sala, encostado à mesa das fotografias, o rapaz sorria-me. O melhor e mais belo sorriso que alguma vez vi.
- Há muito tempo que não me sentia tão bem.
Fitei os olhos claros e emocionados da minha querida anfitriã. Em seguida, sorri também. Agora eu sabia, porque motivo ele me tinha dado aquela morada.  

FIM


(Imagem: http://www.hierophant.com.br/arcano/posts/view/Health/1406)

Comments

Popular posts from this blog

Conversations with a Killer: The Ted Bundy Tapes

This is not the sort of show which I usually talk about on this blog. However, as a psychologist, I’m usually quite curious in regards to criminals and their minds; and one of these days I started watching this documentary on Netflix . Taking into consideration the kind of thing this is, I can’t say I ‘liked’ it. I mean what you see in there is nothing to like, but I was rather terrified, which is probably the usual response. Nonetheless, it was definitely a good documentary. The eyes of a killer Everything displayed in this story was terrible. The descriptions, Bundy’s posture, everything seemed like some sort of horror show, putting into perspective what we may consider to be lucky or unlucky in this life. Before I even start watching it, I read somewhere that this was the kind of thing you shouldn’t watch alone. Sounds accurate right now. At the time, and considering my, mostly academic, experience, I didn’t think that this could actually be so upsetting.

The Mist (2017) - quick review

  A thick mist falls up a town, and something about it isn’t right - good premise. We would expect nothing less than good from a Stephen King’s book. Yet, as we all know, book adaptations can be quite disappointing.  It goes from good to terrible. I loved the plot and, in the beginning, I was very curious and interested - it was almost impossible to stop watching it. Yet, at some point, it started to get on my nerves, and not in the way that a good horror show should. As we got closer to the end of the season, many things stopped making sense. Some characters are simply… not believable. The explanations for whatever was happening were ridiculous and easily refutable. It all took away the feeling of “this could be real”. It killed my interest. Many changes were made to the original novel. Some of them were interesting and made the story better, yet others were… well, nonsense. Cast and production As I said before, the first episodes were good and made us want to keep watching, but I was

Show Review: Emily in Paris

  It took me a long time to give Emily in Paris a shot because I thought it would be a silly, shallow comedy about some sort of influencer. Well, it is a silly, shallow comedy about some sort of influencer, but to be honest, I liked it.  Emily is a young talent in a marketing career and has the opportunity of her life: working in Paris for a year! And since her boyfriend is an idiot, she can try the full experience of being a single woman in the city of love.  Unfortunately, she is not as good at managing her personal life as she is at work. In fact, she is frankly terrible at making decisions outside work. Cultural Differences Everyone who has been in a foreign country knows that sometimes we get ourselves into awkward situations due to cultural differences. So watching someone else go through the same is quite funny. I must admit that seeing an American trying to speak French is hilarious. Of course, I’m not French (and French people who hear me trying to speak French could have a s