Apesar
do aspecto velho e gasto dos móveis, a casa estava mais ou menos
limpa, o que estranhei. Não havia pó em cima dos móveis e apenas
uma ou outra migalha de pão se encontrava caída no chão.
Calmamente, comecei a caminhar pela sala e fui observando os sofás
poídos, a mesa com a perna partida, as cadeiras com as almofadas
rasgadas pelo tempo ou pelas unhas de algum gato.
O
meu coração quase parou, quando olhei para uma mesinha ao canto,
onde estavam pousadas dezenas de fotografias. Aproximei-me e
observei-as, eram todas da mesma pessoa e peguei a moldura da frente.
Não havia dúvidas. Era ele.
Um
ténue barulho atrás de mim, fez-me saltar com o susto. Ao
voltar-me, fiquei frente a frente com uma senhora na casa dos 70, que
me olhava com uma expressão apreensiva. Sem saber porquê, voltei a
olhar para a fotografia na minha mão, agora desfocava pelo tremor
que o susto me causara.
-
Desculpe. - apressei-me a dizer. - Pensei que... a casa estava vazia.
-
Também eu. - respondeu, com o olhar cheio de ternura. - A casa está
velha, mas eu moro aqui.
-
Peço imensa desculpa pela intromissão, mas foi me dada esta morada
e... - Aquilo era de loucos. Mostrei-lhe a moldura ainda na mão. -
Quem é?
Um
dos mais belos e bondosos sorrisos que alguma vez encontrei, iluminou
o rosto daquela mulher.
-
É o meu filho. Era um bom menino.
Era?
Talvez
por verificar a minha expressão surpresa e confusa, resolveu
elucidar-me.
-
O meu filho faleceu há alguns anos atrás...
-
Eu lamento muito. - Senti a minha voz tremer.
-
O tempo ensina-nos a viver com as coisas.
A
tristeza contida no seu olhar contradizia as palavras proferidas sem
grande convicção. Senti um estranho sentimento de ternura por
aquela desconhecida, que demonstrava uma grande capacidade de amar. O
meu coração, porém, continuava com a sua batida irregular. Aquele
era o homem que falara comigo junto ao rio. Como era possível?
-
Ele tem... teve... filhos?
-
Não. - respondeu fitando a fotografia na minha mão. - Não teve
tempo, partiu muito jovem.
O
meu olhar devia reflectir todo o horror que estava a sentir naquele
momento. Como era possível que ele tivesse vindo falar comigo?
Talvez a mãe achasse que ele estava morto e... Mas então... Ele...
Não... Se assim fosse... Porque me mandara para ali? Para lhe
contar? Voltei a olhá-la.
-
Desculpe, mas disse-me que ele tinha falecido há alguns anos...
Os
seus olhos estavam brilhantes e húmidos.
-
Dez anos. Dez anos de solidão e de uma vida sem significado... Dez
anos, durante os quais Deus se esqueceu de mim.
Tinham
passado 10 anos... ele teria envelhecido durante esse período de
tempo. Voltei a olhar a fotografia. Não, era o mesmo exacto rosto,
sem uma ruga ou cabelo branco a mais. Com o horror a contorcer-me o
estômago, despedi-me da mulher, com uma estranha urgência. Ela
continuava a fitar-me com ar confuso. Ao fim de alguns segundos,
acabou por dizer-me:
-
A menina... como chegou até aqui?
Voltei
a olhá-la. Contei a verdade. Ou o que podia dela.
-
Sou bailarina e hoje ao chegar ao pé do meu saco, encontrei um
papelinho com esta morada. Alguém deve ter deixado cair. Alguém...
que a conheça.
-
Hmm... Isso é muito estranho. Estou tão só que nem as moscas me
fazem companhia, há muito tempo...
Senti-me
corar. Tinha ido perturbar aquela pobre mulher, já tão sofrida.
-
Desculpe a intromissão.
-
Não há o que desculpar. - referiu com um sorriso afável. - Gosto
de ver uma cara bonita de vez em quando.
O
seu sorriso era contagiante e não pude deixar de sorrir em resposta.
Voltei a despedir-me, agora, com a promessa de voltar um dia para um
chá.
No
caminho para casa, pensei no quão surreal era tudo aquilo. Como é
que era sequer possível? Alguma brincadeira de mau gosto? Se não
tinha família, como podia alguém ser tão igual a ele? E ainda por
cima, saber a sua morada? E … se fosse... um fantasma? Senti-me
ridícula pelo meu pensamento e ao mesmo tempo, não era capaz de
encontrar uma explicação melhor. Suspirei.
Ao
chegar a casa, liguei imediatamente o computador. Vi o meu e-mail,
nada de interessante e recostei-me na cadeira. Fiquei durante alguns
minutos a pensar no rapaz que conhecera perto do rio e decidi
investigar um pouco mais, dentro das minhas possibilidades. Durante a
conversa, a velhota tinha-me dito o nome dele e tentei encontrar
alguma informação na internet.
Não
demorei muito a deparar-me com uma notícia de jornal. Ele tinha sido
a única vítima mortal de um terrível acidente de viação, numa
auto-estrada do norte do país. Uma noite chuvosa, falta de sono e
excesso de velocidade, tinham sido os seus acompanhantes até ao lado
de lá...
Fechei
a tampa do portátil, sentindo uma estranha comoção e tentei dizer
a mim mesma que tinha estado a conversar com um fantasma e que ele me
tinha enviado à sua antiga casa. Olhei o espelho na parede à minha
frente. Sem saber porquê, já não me custava tanto acreditar nessa teoria,
mas... Se era verdade, então porque motivo ele o fizera? Pensei
novamente naquela mulher de rosto sofrido.
No
dia seguinte, saí bem cedo do trabalho. Passei numa pastelaria ali
perto e escolhi alguns “mimos”. Na dúvida sobre as suas
preferências, escolhi os que mais gostava e dirigi-me novamente à
morada dele.
Fui
acolhida com um enorme sorriso e disse-lhe:
-
Trouxe alguns mimos para nós.
Abri
ligeiramente a caixa e um novo sorriso se mostrou.
-
São os meus preferidos. - respondeu-me, visivelmente agradada.
Nessa
tarde, bebemos chá e comemos bolinhos. Conversámos durante horas e
horas. Ela partihou comigo as histórias da sua vida. Eu partilhei o
meu mundinho que jamais gostava de dividir fosse com quem fosse. Era
como se nos conhecessemos há muitos anos.
Do
canto da sala, encostado à mesa das fotografias, o rapaz sorria-me. O melhor e mais belo sorriso que
alguma vez vi.
-
Há muito tempo que não me sentia tão bem.
Fitei
os olhos claros e emocionados da minha querida anfitriã. Em seguida,
sorri também. Agora eu sabia, porque motivo ele me tinha dado aquela
morada.
FIM
(Imagem: http://www.hierophant.com.br/arcano/posts/view/Health/1406)
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