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Esqueletos no Armário (3ª parte)



Gabriel sentou-se na cama e inclinou-se ligeiramente para a frente, de modo a assentar os cotovelos sobre os joelhos e fitou as mãos, cujos dedos entrelaçara.
- Sei que deves estar a pensar que sou um monstro.
- E não és?
- Talvez.
- Não importa o que penso. Explica. Quero sinceramente ouvir o que tens a dizer.
- Eu... sempre... fui diferente... daquilo que é considerado normal, ou.. esperado. Nunca percebi o que era a emoção, nunca entendi o choro ou.. a felicidade. Nada. Para mim, o lado emocional era o mais completo vazio. A única forma de eu... sentir... alguma coisa era... magoar. - Eu ouvia-o em silêncio tentando controlar a minha expressão facial. - Cresci sem ser notado, um pouco gozado na escola, mas isso não me afectava mais do que a qualquer outro, bem pelo contrário. Aos poucos fui me afastando mais e mais das pessoas e descobri a minha paz, a minha... adrenalina... a matar.
Respirei pausamente para conter qualquer emoção prestes a explodir.
- Aos poucos, - continuou. - e à medida que crescia, comecei a perceber que jamais me poderia encaixar se continuasse assim, então comecei a tentar perceber como os outros reagiam, como era suposto eu reagir, o que esperavam de mim e... tentava imitar.
- Tu copiavas... os sentimentos?
Um grande suspiro foi emitido, fazendo-se ainda mais ruidoso em meio ao silêncio sepulcral do quarto.
- Não, eu imitava as reações, pois não era capaz de sentir.
Fui obrigada a desviar o olhar do homem com quem convivia há tantos anos. Continuava sem entender, como era possível que eu nunca tivesse percebido nada de diferente nele. Ou melhor, eu vira, eu sabia que ele não era igual aos outros e fora precisamente isso que me fizera apaixonar. Senti os cabelos a eriçarem-se na nuca.
- Como começaste? Como... a...
- A matar?
Assenti com a cabeça, incapaz de pronunciar a palavra. Porque é que para ele era tão fácil dizê-lo? Tão.... desprovido de emoção?
- Comecei com animais. Pequenos, a princípio. Ratos, pombos. Depois... passei para o gato de estimação da minha mãe. - Senti o sangue fugir-me do rosto. - Percebi que eu não sentia qualquer receio de ser descoberto, mas alguma outra coisa se manifestava em mim. Percebi, que isso me fazia sentir.
- Mas aquilo que ali tens... não são descrições de an... - A voz fugia-me pelo nervosismo.
- Não. - disse-me. - Depois e com o tempo, matar animais deixou de me fazer sentir o que quer que fosse.
- Evoluiste.
Foi a sua vez de ficar em silêncio. Fitava atentamente o meu rosto.
- E se um dia.. deixares de sentir com as pessoas?
- Não sei. Talvez... - desviou o seu olhar do meu. - Se esse dia chegar, talvez tenha chegado finalmente a hora de acabar com a minha própria vida.
- Não. - Um grito abafado e irreconhecível saiu-me dos lábios.
- Ninguém pode viver sem sentir, Mariana. É impossível.
- Aquelas pessoas...
- Eram todas inocentes.
Fitei-o bem nos olhos.
- E eu? - Era uma pergunta estúpida de se fazer, ainda assim, não a pude silenciar.
- Tu não tens nada a ver com isto.
- Não?
- Claro que não. Jamais seria capaz de te magoar.
- Então... sentes alguma coisa por mim?
- Sinto. Alguma coisa... Sinto. - declarou por fim, com maior firmeza.

Calei-me. Continuo calada. Todos os dias. Mesmo quando oiço os gritos que já não me passam despercebidos na calada da noite. Continuo a olhar no abismo profundo dos seus olhos e penso: que espécie de monstro sou eu?

FIM



(Imagem: mon-autre.blogspot.com)

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