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Conto - 2ª parte

 Quando voltei a mim, sentia uma enorme dor de cabeça. Abri os olhos com dificuldade, o corpo todo doia. Apalpei meio a medo as pernas e os braços, não, não havia nada partido.
Olhei em volta, tinha caído para o andar de baixo. Eu nem sabia que havia andar de baixo. Ao meu redor, só via ligeiros contornos que não permitiam reconhecer os objetos que ali se encontravam. Levei a mão ao bolso traseiro das calças, tentando alcançar o telemóvel. Tudo o que encontrei, foram fragmentos, soltos e partidos.
- Isto está cada vez melhor...
Estar ali era quase tão assustador como estar lá fora, a pessoa que estava a observar-me podia a qualquer momento entrar na casa. Olhei para cima, pensando numa forma de alcançar a saída, mas estava demasiado alta. Voltei a fitar o aparelho partido na minha mão. O louco podia também ser a minha única hipótese de sair dali. Arrepiei-me com a ideia.
- O que foi que me deu na cabeça para vir até aqui?
Respirei fundo e tentei pensar claramente no que se estava a passar. Talvez à luz do dia, eu conseguisse arranjar uma forma de sair. Por toda a divisão, pareciam existir vários objectos grandes, se conseguisse arrastá-los para baixo do buraco, talvez conseguisse sair.
Então, a sala ficou ainda mais escura, se é que isso fosse possivel. Olhei em volta, tentando perceber o que estava a acontecer. Foi quando reparei na pequena janelinha, à altura da minha cabeça, era dali que vinha a réstia de luz e agora estava tapada com... Tapei a boca com a mão, de modo a não gritar. Do outro lado da janela duas botas pretas estavam paradas. Desviei-me do feixe de luz que entrava ainda por um dos lados e tentei observar. Não via nada, só as botas e as pernas. Tudo escuro. Quem quer que estivesse lá fora, continuava a observar. Bem, pelo menos continuava lá fora.
O meu corpo continuava dorido e agora sentia frio. Por mais que olhasse à minha volta, não via onde dormir e pior, aquele sítio devia estar infestado do meu pior inimigo, aranhas. Só de pensar nisso, quase podia senti-las a circular por cima de mim...
- Pára, pára já com isso. Não há nada em cima de ti. - disse, baixinho.
Sentei-me no chão, o mais longe possível dos objetos ali guardados e abracei as pernas. Quanto tempo iria ficar ali? E o sujeito lá fora? Conseguiria entrar? As lágrimas começaram a escorrer-me pelo rosto, a uma velocidade estonteante.
Acordei na manhã seguinte com os raios de sol a beijar-me o rosto. Sentia o corpo enregelado e rígido e o suave calor no rosto sabia-me bem. Endireitei-me. Não tinha sido apenas um sonho, eu continuava numa cave, que sequer sabia que existia e, sem maneira de sair dali. Respirei profunda e lentamente tentando acalmar-me um pouco. Eu tinha de encontrar uma forma de sair dali sozinha. Levantei-me com dificuldade e tentei movimentar o meu corpo dorido. À minha volta estavam os mais variados objectos meio tapados por panos brancos algo decompostos pelo tempo. Comecei então, devagar, a destapar os montes brancos que via. Milhares dos meus grandes inimigos começaram a fugir em todas as direcções. Esforcei-me por não gritar.
- São só aranhas. - disse baixinho.
Observei melhor os objectos que ali se encontravam. Dezenas, talvez centenas de livros empoeirados, com os títulos escritos numa língua que me era totalmente desconhecida. Os caracteres não se pareciam com nenhuma língua que eu conhecesse e no interior, as imagens eram confusas.
Passei ao segundo monte branco. Puxei o lençol e tive um ataque de tosse pelo pó que se espalhou pelo ar. Debaixo deste, uma mesa quadrada exibia aquilo que poderiam ser desenhos, ou palavras cravadas no tampo. Baixei-me um pouco mais para tentar observar. Pareciam os mesmos símbolos que estavam nos livros.
No outro canto da sala, um armário fechado. Com alguma dificuldade consegui abrir as portas de madeira apodrecida. Dentro do armário, vários frascos de diversos tamanhos. Observei com curiosidade. Alguns deles pareciam objectos usados num vulgar laboratório, outros estavam cheios de ervas e flores. Alguns continham líquidos que não pude identificar. Um arrepio percorreu a minha espinha. Seria aquela sala algum tipo de laboratório de droga? Mas qual o acesso? Eu não via nenhuma porta. No entanto, aquelas coisas tinham de ter entrado ali por algum lado...
Continuei a inspecionar a divisão e encontrei então uma arca, daquelas antigas, que me fez lembrar um filme que vira há muitos anos. Observei-a com atenção, continha as mesmas gravações que vira na mesa. Instintivamente, tentei abri-la, mas não consegui levantar a pesada tampa.
Verifiquei com mais atenção e uma enorme fechadura mantinha afastados olhares indiscretos. Forcei-a novamente. Nada. O que poderia haver ali de tão importante que precisasse de tão forte fechadura? Ao olhá-la novamente, percebi que reconhecia aquele formato de chave. Era a chave gigantesca que se encontrava no chaveiro da entrada. O que quer que fosse aquela divisão, os amigos dos meus pais estavam cientes da sua existência, o que me deixou com uma desagradável sensação de traição. Mas naquele momento, o que mais me preocupava era arranjar uma forma de sair dali e tendo em conta que não havia nenhuma porta à vista, a arca ou a mesa teriam de ser suficientes para que eu pudesse saltar para o andar de cima novamente.
A arca revelou-se demasiado pesada para ser arrastada, pelo que me decidi pela mesa. Coloquei debaixo do enorme buraco que se abrira no soalho e preparei-me para subir. Era quase um crime colocar os pés em cima daquele trabalho tão meticuloso, mas não era a hora nem o lugar para pensar em património. Subi para a mesa e verifiquei, que apesar de estar bem mais alta, não seria tão simples como tinha pensado, na verdade, era quase impossível sair dali.
Nesse momento, uma sombra debruçou-se sobre mim, fazendo-me gritar e cair desamparada da mesa abaixo. Olhei aterrorizada para o buraco no que era agora o meu tecto. Aquela figura assustadora estava ali debruçada sobre mim.
- Quem é você? - perguntei com a voz a falhar-me na garganta.
O desconhecido não disse uma palavra e esticou-me a sua mão. Fiquei parada no mesmo sítio a olhá-lo, durante vários minutos. Ele permaneceu imóvel de mão esticada na minha direcção.
Não sabia exactamente quem ele era, talvez pudesse ser algum tipo de psicopata, talvez um assassino, mas a verdade é que não tinha outra forma de sair dali, senão com a sua ajuda. A medo, voltei a subir à mesa e estiquei a minha mão. O homem agarrou-a com firmeza e puxou-me para fora do buraco.
Quando me vi novamente no rés-do-chão da casa, nem queria acreditar.
- Obrigada. - balbuciei por entre um sorriso. Por um breve momento, não pensei mais na possibilidade dele ser um serial killer, prestes a torturar-me até à morte. No entanto, passado o momento inicial, o medo voltou a esmagar-me os pulmões.
- O que o senhor faz aqui?
- Vi-te cair e pensei que precisavas de ajuda.
O estranho tratamento familiar, usando a segunda pessoa do singular, fez-me observar mais atentamente o seu rosto. Era um homem de meia idade, de cabelo grisalho e olhos claros. O rosto era vincado por rugas finíssimas em torno dos olhos e da boca. Aquela imagem não condizia em nada com a camisola de capuz que ele vestia.
- Eu caí ontem à noite.
- Tinhas a porta trancada, não foi fácil entrar na casa. Espero não ter feito muitos estragos.
Dei uma olhadela rápida à porta da rua. Arrombada.
“Boa... Ainda vou ter de pagar pelo arranjo.”
Quando voltei a olhá-lo, ele fixava-me intensamente.
- Este não é um sítio turístico, nem tem outras casas à volta. O que o senhor estava a fazer aqui?
- Há anos que venho aqui. - respondeu, enquanto caminhava na direcção da sala. - Sempre à espera, mas....
- A casa está fechada há muito tempo...
Ele olhou-me e o seu olhar era gélido.
- Desde que a tua mãe morreu. - Senti um arrepio entranhar-se nos ossos.
- O senhor conhecia a minha mãe?
- Conheci. - declarou num tom pouco amistoso. - E ela ficou com algo que era meu. Eu quero-o de volta.
Senti a minha boca abrir-se de espanto.
- A minha mãe tinha algo que era seu?
- Sim, eu emprestei-lhe há muito tempo atrás. E ela morreu antes de mo devolver.
- Eu não faço ideia do que está a falar.
- Não mintas. Eu sinto a sua energia em ti.
- A energia da minha mãe?
- Não! - gritou, fazendo-me sobressaltar. - A energia do anel.
Instintivamente levei a mão ao pescoço. O anel da minha mãe. Era a isso que ele se referia? Para meu desespero, não encontrei o fio no qual ele estava pendurado.
- O anel... eu perdi!
O homem olhou-me.
- A minha mãe deu-me um anel e disse que deveria cuidar dele com carinho, e nunca o perder. E eu perdi! Não está mais aqui!
- Não! Não depois de todos estes anos! - rosnou.
Olhei-o estupefacta.
- Que tem esse anel de tanta importância?
Num piscar de olhos, senti a sua mão em redor do meu braço, apertando-o firmemente.
- Encontra-o. Tens de encontrá-lo!
- Calma! - pedi assustada, no entanto, o seu olhar era aterradoramente gélido e sem qualquer ponta de carinho ou compaixão.
- Talvez tenha caído na queda.
Eu olhei-o.
- Se me disser o que tem de tão importante, eu posso procurá-lo.
Sem que eu tivesse tempo para o menor raciocínio, estava pendurada sobre o enorme buraco para a cave, presa apenas pela fragilidade da minha camisola de lã.
- Se eu te atirar lá para baixo, também podes.
Não me apetecia cair novamente daquela altura, pelo que lhe pedi que não o fizesse. Prometia procurá-lo. Voltou a puxar-me agressivamente para dentro de casa e em seguida soltou-me, saindo pela porta arrombada.


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