Aqui fica a primeira parte do meu novo conto. :)
UM SUSTO DE MORTE
O
dia começou bem cedo, iniciado pelo som metálico e desagradável do
meu velho despertador azul turquesa. Levantei-me ao primeiro toque,
precisava de tempo suficiente para tomar o meu banho demorado, numa
banheira cheia de espuma e sais perfumados e um pequeno-almoço
reforçado, com ovos e bacon e poder ainda reler a apresentação
daquele dia.
Aquela
seria a grande oportunidade da minha carreira e eu sabia que se a
perdesse muito dificilmente teria outra. Sentia o meu corpo a
contorcer-se por dentro em pequenos espasmos de expectativa e
ansiedade, mas tentava estar controlada. Espantosamente, estava a
conseguir. Sabia que durante a apresentação, estaria presente
alguém vindo de uma outra empresa, com a qual a minha estava a
tentar estabelecer um protocolo de cooperação. Se conseguisse
impressioná-la... Mas o melhor era, para já, não sonhar muito
alto. No momento, bastava-me que o meu chefe aderisse à ideia, o
resto viria com o tempo.
Trabalhar
numa grande multinacional e ter ideias ao mesmo tempo poderá ser uma
tarefa bastante árdua e stressante. Haverá sempre alguém com
ideias melhores, ou, pelo menos, com uma melhor relação com a
pessoa que avalia essas mesmas ideias... Durante anos, eu trabalhara
neste projecto com afinco e determinação, mas estava nesta empresa
há ainda mais anos para conhecer bem a forma como realmente
funcionavam as coisas. O meu estômago voltou a contorcer-se em
agonia.
Após
o meu banho de espuma, vesti o roupão turco, branco e dirigi-me ao
espelho da casa de banho. Peguei o kit para dias especiais e
em seguida, maquilhei-me e desmaquilhei-me várias vezes. Ou era
demasiado ou não era o suficiente, ou tinha demasiada cor, ou estava
demasiado pálida... Atirei com o revirador de pestanas que tinha na
mão para dentro do lavatório e expirei ruidosamente. Eu tinha de
estar perfeita hoje. Quando finalmente, achei que estava aceitável,
escovei os meus cabelos, longos e escuros, alisando-os com o secador.
Já vestida com um fato escuro e discreto, sentei-me à mesa da
cozinha a comer, enquanto relia a minha apresentação.
À
medida que as horas passavam, sentia mais e mais ansiedade e
para a controlar decidi sair de casa bem antes do que seria
necessário e caminhar até à paragem de autocarro, que ficava
incrivelmente longe. Caminhava lentamente, pois os saltos altos dos
sapatos pretos acabados de estrear, magoavam-me os pés.
Naquele
dia, tive aquela velha sensação de que o mundo parecia estar unido
contra mim e quando estava suficientemente longe de casa para voltar
e ainda longe da paragem para a ela me dirigir, começou a chover
torrencialmente. Em menos de um minuto, estava encharcada.
Sem
querer acreditar no que me estava a acontecer, abriguei-me debaixo
das varandas de cores desbotadas dos prédios mais próximos e revi
rapidamente as minhas opções. Chegar atrasada ao meu grande dia
estava absolutamente fora de questão, então teria de arranjar uma
solução rapidamente.
Como
que por milagre, vi ao longe, um táxi a cruzar a esquina da rua. Era
isso mesmo que eu precisava. Corri para lhe fazer sinal, mas quando o
mesmo parou, uma mulher de casaco cinza escuro e com cabelo de fogo
entrou no meu lugar. Furiosa, gritei-lhe uma meia dúzia de
impropérios. De dentro do carro, ela fitou-me friamente. Não podia
acreditar. Eu jamais esqueceria aquele olhar, aquela expressão,
aquele rosto...
Já
tinham passado tantos anos, que eu nem me lembrava do que acontecera
ao certo, naquele fatídico São Valentim. Contudo, bastou-me ver
novamente o seu rosto por uma fracção de segundo, para que a raiva
voltasse a ressurgir em mim com uma força renovada. Era ela, a
mulher que tinha destruído o meu sonho romântico, quando eu tinha
apenas 17 anos.
Poderia
parecer exagerado para quem observasse a cena do lado de fora, mas
quem pudesse sentir uma pequena amostra do que eu sentira por Ele,
saberia que a minha fúria era legítima e absolutamente justificada.
Nunca tinha voltado a apaixonar-me novamente, não só pelo amor que
lhe tinha, mas também, porque não poderia voltar a confiar em
ninguém após aquela noite.
Felizmente,
nos dias de chuva, os taxistas sabem que podem conseguir lucros
adicionais e todos circulam pela cidade, o mais depressa que podem.
Tinham passado menos de 2 minutos e eu já estava a entrar num novo
carro em direcção aos escritórios envidraçados da empresa.
Assim
que me vi no elevador, a subir para o 18º andar, esqueci rapidamente
aquela mulher. O que tinha acontecido era passado e talvez ela nem se
lembrasse. Pouco importava agora. Ela era apenas um fantasma de uma
passado que eu queria esquecer. Este era o meu grande dia, a minha
grande oportunidade e tinha de estar a 100% para fazer uma boa
apresentação.
Mal
a porta do elevador se abriu, dirigi-me imediatamente e em silêncio
para a minha mesa. Tirei o casaco e coloquei-o sobre o tampo de
pinho, sentando-me em seguida, à frente do computador desligado.
Respirei lenta e profundamente durante alguns minutos. Estava tudo
pronto, só precisava de manter a calma.
-
Bom dia. - disse-me Helena, minha colega de longa data e uma das
minhas melhores amigas dentro da empresa. - Pronta para arrasar?
-
Sempre! - Tentei disfarçar o nervosismo com entusiasmo. - Já
chegaram?
-
Já, o Dr. Ricardo está a mostrar os escritórios à representante
do grupo deles. Prepara-te, porque parece ser uma mulher muito
convencida.
Sorri.
Já tinha lidado com muito pior.
Passados
cerca de 20 minutos, Sónia, uma secretária enfezada e pouco
sorridente, que trabalhava tantas horas, que já lá estava quando
chegávamos e ainda lá ficava quando saíamos, veio chamar-me.
-
O Dr. Ricardo está à sua espera na sala de reuniões.
O
meu coração deu salto dentro do peito. Agradeci-lhe, peguei em tudo
o que precisava e dirigi-me até lá, enquanto ordenava ao meu
cérebro que estivesse confiante nas suas capacidades e na total
viabilidade do projecto.
Ao
passar pela porta com os puxadores dourados, um choque eléctrico
trespassou o meu corpo e durante alguns minutos fui incapaz de
reagir. Ela estava ali, a mulher do cabelo de fogo, a minha grande
inimiga da adolescência. Assim que entrei, ergueu os olhos
excessivamente maquilhados e sorriu-me cinicamente.
-
Esta é a Dra. Vitória.
-
Doutora? - dei por mim a perguntar, incapaz de manter uma linha de
raciocínio coerente. Ricardo lançou-me um olhar fulminante.
-
Nós já nos conhecemos. - declarou Vitória, na sua voz finíssima.
- Há muitos anos, na verdade. Não há necessidade de salamaleques.
O
meu chefe fitou-nos com surpresa.
-
Bem, nesse caso... Eu não fazia ideia... - Ricardo parecia, pela
primeira vez desde que o conhecera, não saber como reagir.
-
Não sabia que trabalhavas aqui. - continuei, fitando-a friamente nos
olhos, enquanto tentava ignorar o olhar fixo de Ricardo sobre mim.
-
E não trabalho, trabalho para a concorrência.
O
seu sorriso era falso e o seu olhar demolidor. Não sabia o que
fazer, era estranho saber que aquela mulher ali estava e mais ainda,
que ia avaliar o meu trabalho, que demorara anos a concluir. O meu
coração começou a acelerar, a boca ficou seca e o meu cérebro
congelou por mais alguns segundos.
-
Vamos lá. - referiu calmamente Ricardo, apesar do seu sorriso
inseguro. - Convence-nos.
O
seu olhar era límpido e sincero e eu sabia que apesar das nossas
diferenças ele desejava o meu sucesso e queria ver-me a melhorar e
subir dentro da empresa. Porém, o meu nervosismo fez com que,
naquele momento, a sua expressão me parecesse uma provocação. Eu
queria gritar, queria tirar aquela mulher dali aos pontapés. Mas não
podia...
As
minhas mãos tremiam incontrolavelmente, enquanto ligava o portátil
e o projector de vídeo. Respirei fundo e uma vez mais relembrei a
mim mesma que o meu projecto era viável e de qualidade.
Quando
por fim comecei a apresentação, tentei a todo o custo evitar o seu
olhar. Durante os primeiros minutos gaguejei um pouco, lutando contra
a protuberância que tentava fechar-me a garganta, mas lentamente fui
ganhando maior confiança e aos poucos comecei a falar com mais
desenvoltura.
Contudo,
e apesar de estar certa da qualidade do que apresentava, passados
cerca de 10 minutos, ela interrompeu-me.
-
Desculpe, mas não compreendi o que disse.
Engoli
em seco e tentei explicar uma e outra vez, de todas as formas que me
foi possível, enquanto observava o seu rosto provocador. Um sorriso
malévolo invadia suavemente a sua expressão, enquanto eu metia os
pés pelas mãos, sentindo-me completamente humilhada. Ainda fiz uma
última tentativa por ignorá-la, mas era impossível. Continuou a
interromper-me vezes e vezes sem conta, até que, sem me deixar
concluir a apresentação, voltou-se para Ricardo e disse:
-
Desculpe, mas não vejo em quê que isto pode ser útil para a minha
empresa.
Eu
fitei-o nervosamente. Senti o amargo sabor da derrota na boca. Depois
de tantos anos de trabalho...
-
Talvez se me deixar terminar a exposição... - atrevi-me ainda a
dizer, em voz sumida. Mais uma vez, ela estava a vencer...
-
Não. - declarou firmemente, enquanto se erguia da cadeira. - Já vi
ouvi o suficiente. - E sem mais uma palavra, saiu pela porta de vidro
fosco.
Vi
o fogo do seu cabelo afastar-se pelo corredor e em seguida voltei-me
na direcção de Ricardo. O seu olhar era da mais profunda desilusão
e isso angustiou-me tremendamente. Por muito que tentasse, o
sentimento que nutria por ele ia muito além do profissional e isso
tornava tudo ainda mais difícil.
-
Ricardo...
Ele
ergueu a mão esquerda silenciosamente, para que eu me calasse e em
seguida saiu da sala de reuniões.
Mais
uma vez, ela tinha acabado com tudo, absolutamente tudo. Chegara a
hora de tomar uma atitude drástica. Acabava-se ali a adolescente
inocente, a parvinha que se deixava espezinhar e ia para casa chorar.
Já não estávamos no liceu e ela não fazia ideia do que a
esperava: vingança.
(CONTINUA)
Comments
Post a Comment